segunda-feira, maio 9

Laboratório de escrita criativa - nível avançado - bloco 10

O bairro da periferia contrariava as estatísticas que proclamavam a descida abrupta da taxa de natalidade. O grupo de meninos tinha andado a namorar durante dias o alto muro que ficava no fundo do bairro, não sabiam o que estava do outro lado, só o imaginavam pelo estonteante aroma a maçã que se evolava no ar. 
Reuniram-se para combinar uma estratégia e decidiram unanimemente fazer o que todos os meninos em todas as partes do mundo fazem, desde tempo imemoriais, saltar o muro para roubar maçãs.
Quando desceram, do outro lado do muro, encontraram um mundo totalmente diferente, um jardim encantado, com muitas árvores de fruto, na sua grande maioria macieiras plantadas por entre flores silvestres.
Até onde a vista alcançava viam-se anjos e arcanjos, louros e rosados,com asas douradas brilhantes esvoaçando entre as árvores e as flores, competindo com os pássaros e as borboletas. Alguns, em grupo, conversavam e riam dos seus chistes, enquanto comiam bolos coloridos que apanhavam de algumas árvores.
Os meninos ficaram estáticos perante aquele cenário, sem saberem bem que atitude tomar, se roubavam as maçãs e fugiam ou flanavam por ali explorando o paraíso.
Se ao menos tivéssemos alguém que nos guiasse! - disse um deles.
Querem que vos sirva de guia e mostre as atracções?
As crianças olharam para todos os lados, sem entenderem quem se lhes tinha dirigido.
Aqui em cima, estou aqui. - disse a mesma voz.
Seguindo a indicação da voz depararam-se com uma serpente que lhes acenava com a cabeça. Assentiram e lá foram eles.
- Vamos aqui pelo centro, como já perceberam há por cá muitas macieiras, podem comer maçãs de todas, excepto desta maior, dá umas maçãs muito apetitosas mas não vos aconselho. Da última vez que alguém as comeu foi um sarilho descomunal, eu bem avisei mas o Adão e a Eva não me deram ouvidos, foram expulsos daqui depois de uma repreensão divina que durou dias.
Continuaram o passeio, observando tudo com curiosidade enquanto a serpente descrevia as várias hierarquias de criaturas celestes que povoavam o local: 
- Ali os s serafins, os querubins, os tronos, que mantêm íntimo contacto com o Criador. Acolá os domínios, as virtudes e as potências, são os encarregados dos acontecimentos no Universo. Além os que executam as ordens de Deus, os principados, arcanjos e anjos. 
Chegados junto a Deus, barbas brancas de neve encimadas por uma cabeça coroada de caracóis brancos, uma das crianças perguntou:
Para que serve isto?
A serpente pareceu atrapalhada, pigarreou e por fim disse:
- Bem... Não se sabe... Já ninguém aqui se lembra... Já perguntei a todos, desde o serafim mais novo ao anjo mais velho e ninguém me soube responder.
As crianças fitaram, cheias de curiosidade, a mole imensa que resfolegava e ressonava. Deus dormia numa mansa placidez, ignorando que era totalmente obscuro, que já todos o tinham apagado da memória eterna.

terça-feira, maio 3

Laboratório de escrita criativa - nível avançado - bloco 9

A lembrança de Pedro Quevedo continuava a martelar-lhe na memória. Sentia-se oprimido como se uma mão gigantesca lhe apertasse a alma. A atmosfera ao seu redor contribuía para essa opressão com o seu silencioso calor húmido. De pé, encostado a uma árvore, sabendo que aquele era o seu derradeiro momento de vida, as imagens passam ininterruptamente pelas suas pálpebras cerradas, a chegada de Pedro Quevedo ao aquartelamento, as longas conversas durante as partidas de xadrez intermináveis, a bonomia, o humor corrosivo, a placidez, a forma de estudar as jogadas, a concentração, “Porquê?”. O silêncio opressor do mato parecia tornar-se ainda maior se tal era possível “Porque o matei eu se era seu amigo?”.
A face do jovem major permanece inexpressiva apesar dos pensamentos perturbados que lhe cruzam a mente. Subitamente toda a natureza à sua volta se transformou num turbilhão de sons e movimento, as folhas agitadas por um vento frio, as aves enlouquecidas que começavam a cantar freniticamente, numa aflição, as perdizes que pipiavam assustadas.
Mergulhado nos seus pensamentos atormentados o jovem major não se dá conta da agitação da natureza, a sua tormenta interior abafa completamente a tormenta da natureza, o lago cujas águas se crispam como se fervessem, as folhas que parecem lutar umas com as outras, o esvoaçar alucinado de mil asas. O silêncio impõe-se novamente no memento em que ele abre os olhos e vê a morte.
Andulo ficaria para sempre ligado ao ex-comando Armindo Panguila Pombeiro, fora lá, naquele lugarejo perdido na mata que fizera o seu primeiro morto, recorda-o encostado à árvore, os olhos cerrados, a expressão aparentemente serena, não sentira sequer a sua aproximação, só abrira os olhos um décimo de segundo antes da faca penetrar o seu corpo tenso, fora um olhar atormentado que o fitara, o seu primeiro e único morto, que expirara junto ao seu coração, quando o seu corpo se inclinara em câmara lenta para a frente, pesando-lhe nos braços.
Armindo começou a morrer no dia em que, caminhando descuidado pelo mato, absorto na lembrança da morte do major, pisou uma mina. 
Agora, ali, no branco frio do hospital, dias depois de verificar que já não era um homem completo, pois tinha perdido alguns dedos da mão direita e via a sua mão enfaixada através da névoa que cobria o seu olho esquerdo, o direito tinha desaparecido, sentindo dores na perna direita, que deviam ser psicológicas porque também ela tinha sido amputada. Um resto de homem, dissera-lhe a mulher, não pretendo passar o resto da minha vida com um resto de homem, tratando de um aleijado sem préstimo.
Pensa ainda no major, tem pena de não o ter conhecido melhor, das contingências da vida os terem colocado em campos opostos, da lei da sobrevivência o ter transformado em algoz. Podiam ter sido amigos, se se tivessem conhecido melhor, se estivessem do mesmo lado da barricada, provavelmente ter trocado cigarros, confidências. Enquanto aproxima o cano da pistola da boca pensa que ainda poderá encontrar o major no purgatório dos assassinos, dos guerrelheiros, pedir-lhe desculpa por aquela morte tão abrupta. Aperta o gatilho, o ruído seco da pisitola ecoa no quarto vazio e assusta os pássaros que cantavam na árvore em frente.

segunda-feira, abril 18

Laboratório de escrita criativa - nível avançado - bloco 8

Publico só o exercício que criei, baseada num guião dado pelo Professor:

A Torre já tinha sido movida, ele não podia ter feito roque, não podia efectuar aquele lance, pensava de si para si Pedro Quevedo, enquanto os soldados lhe amarravam as mãos atrás das costas, junto ao muro branco carcomido por buracos de balas. Enquanto olhava para o muro continuava a pensar na jogada de xadrez do dia anterior, fez uma analogia entre aqueles buracos e a estratégia furada do major, aquela jogada não era permitida. Sempre fora correcto ao jogo como à vida, não podia deixar que alguém lhe ganhasse ao xadrez com base numa jogada proibida. Os soldados encostaram-no ao muro e, de frente para o pelotão de fuzilamento, encarou o major, ainda imberbe, que o comandava e atirou-lhe:
Não podia ter feito roque, a torre tinha sido movida.
Mirando as armas do pelotão apontadas a si, todo o caminho percorrido até chegar ali, àquele momento, passaram diante dos seus olhos como um filme super 8 a preto e branco. A batalha de Mavinga, tropas a correr de um lado para outro, confusão, barulho de disparos, a invasão do inimigo, os estampidos a troarem muito perto e a dor lancinante no ombro e na perna, o sangue, tentou rastejar mas não conseguiu, foi capturado. Passou vários meses num hospital de campanha, num tempo lento. 
Quando recuperou completamente foi levado num carro fechado numa viagem que durou várias horas. A viagem terminou no meio do mato, numa fortaleza com algumas edificações de madeira rodadas por uma paliçada alta. 
O xadrez servia para se distrair, iludir o passar do tempo, jogava com o jovem major, que talvez devido á sua juventude, para se impor como carcereiro, fazia os possíveis por vencer, nunca o conseguindo, recorrendo até, por vezes, a jogadas ilícitas.
Naquela tarde que sucedeu a uma dessas tentativas do major, ao fazer um roque quando a Torre já tinha sido movida, ele surgiu com um ar estranho, um olhar fugidio, como que envergonhado, evitando encarar Pedro Quevedo. Com ele vinham três homens que Pedro nunca vira, grandes e fortes. Dirigiram-se a ele e sem uma palavra içaram-no da cadeira e encaminharam-no com autoridade para um jipe.
Sentia-se perdido sem entender aquela mudança de actuação, sem possibilidades de intervir no seu destino, um sentimento de angústia, de perda, de fim irremediável e inevitável.

segunda-feira, abril 11

Laboratório de escrita criativa - nível avançado - bloco 7

“Flagstaff, Arizona. Um dia de arrasar. O resto do deserto. Monument Valley, como se tivesse sido criado apenas para o John Ford ali situar os seus westerns. Arranha-céus de rocha recortados no horizonte. O Grand Canyon, paisagem lunar sulcada por uma serpente sinuosa com a forma de rio. Dead Horse Point. Ponto onde os mustangs eram encurralados. Quando finalmente arranjámos hotel, era já demasiado tarde para outra coisa que não fosse comer hamburgers na cafeteria. Derreados de cansaço e pó, gastámos a noite a beber cervejas na varanda. Uma rotina a instalar-se nos nossos exercícios nocturnos. O Rogério e a Lena repetindo escaramuças sem fim. Uma espécie de ruído de fundo a que se não presta atenção. A Maria José trocando comigo palavras sobre o nosso dia. Lançando os planos também para o dia seguinte. Activa apenas a Clara, num frenesim de desenhos, notas visuais fazendo as vezes de uma máquina fotográfica. E recolhemos cedo. Desta vez, foi a Maria José que me desafiou a ir até ao quarto dela: for same serious drinking. O que fizemos até cerca da uma. Eu a falar, ao de leve, de Portugal, do meu trabalho, de pequenas coisas quotidianas. A Maria José a falar, ao de leve também, do que tinha sido a sua vida na América. Nenhum de nós disposto a abrir ao outro muito mais do que a sua face mundana.”
(Paulo Castilho, Fora de horas, Publicações D. Quixote, Lisboa, 1989, p.117)
Exercício - Bloco 7

Rescrever o texto de Paulo Castilho (ver “5 – Sublinhar a temporalidade das grandes viragens (os turns)”), mas alterando o espaço ambiente norte-americano para um outro espaço ambiente à sua escolha.

Exercício:

Madeira. Um dia de Verão. Penetramos, através de caminhos tortuosos, na floresta laurissilva. Descemos ao Ribeiro Frio ainda o sol está a pique no céu. Debaixo do arvoredo frondoso está fresco, há um jogo de luz e sombra que fascina. As várias tonalidades de verde recortam-se no céu azul. O grupo discute o que fazer, uns querem ir aos Balcões, outros preferem ficar por ali a ver as trutas. A Marta, a Luísa e o Gustavo decidem ficar a observar as azáleas carregadas de flores numa miríade de cores e as trutas saltando nos tanques, junto do ribeiro cantante. Caminhamos debaixo de uma abóbada de folhagem num caminho de terra batida. O silêncio reina, só quebrado pela água sussurrante da levada, pelo som dos nossos passos e pelo estalar de algumas folhas. Caminho junto do Antero e da Mariana, a Joana vem atrás com os outros, afasta-se de mim, uma metáfora do nosso casamento, que está por um fio. Passamos um túnel cavado na rocha e chegamos ao miradouro que se debruça sobre a paisagem ímpar. O céu sulcado por nuvens brancas volumosas, o verde a dominar com as casinhas espreitando.À direita a mole da Penha d’ Águia, ao fundo o mar incendiado pelo pôr-do-sol. Procuro a Joana com os olhos, vejo-a no varandim olhando embevecida a paisagem, pergunto-lhe se ainda há alguma possibilidade para nós, só recebo como resposta um olhar de repreensão, como se cometesse uma heresia por falar em frente àquela paisagem. Ficamos lado a lada, cada um indisponível para abdicar da sua posição. 

segunda-feira, abril 4

Laboratório de escrita criativa - nível avançado - bloco 6

Exercício - Bloco 6

Redija os dois clímax, intervalados pela cena de pacificação doméstica, correspondentes à segunda história encomendada pela Metropolitan a Patricia Highsmith (ver na matéria deste Bloco 8).
(não ultrapasse um máximo de trinta linhas e sinalize as três diferentes partes da narrativa em causa)

Exercício:

Chegaram de madrugada à casa de campo isolada. A lua de mel prolongar-se-ia por duas semanas, ela estava feliz, leve, apesar de cansada, ele aparentava contentamento. Enquanto Gustavo tirava as malas do carro ela foi até à cozinha fazer um chá, estava cheia de sede, não estava habituada a beber tanto champanhe. O ruído vindo da cave passou despercebido enquanto abria os armários e contabilizava mentalmente a comida armazenada.
No dia seguinte acordaram juntos e enquanto Gustavo foi à vila comprar pão fresco, Helena ficou a fazer o café e a abrir a casa para deixar o sol entrar. Desta vez ficou surpreendida e preocupada com um ruído de passos, pelo menos assim parecia, na cave, mas a chegada do marido distraiu-a. À hora de almoço, notou que lhe faltava um pacote de bolachas no armário e riu de Gustavo e da sua fome nocturna e quando ele negou não acreditou. Quando deu por falta de um frasco de compota que o marido comprara de manhã, associou-a aos ruídos da cave e, nervosa e aflita, pediu a Gustavo que fosse investigar. 
Este desceu à cave e fitou, espantado, o homem que o olhava com ar assustado.
- Quem é você e o que faz aqui? - perguntou empunhando o taco de basebol com que se munira.
- Não me faça mal, não tenho para onde ir, vivia na rua e entrei aqui para me recolher, como vi que a casa não estava ocupada fui-me deixando ficar, mas não roubei nada, só comida.
Mas você não pode continuar aqui, a minha mulher é que ouviu ruídos e vim investigar,ela não vai consentir que continue aqui.
Faço qualquer coisa, mas deixe-me ficar aqui mais uns tempos, preciso de reunir forças para me reerguer e sair do buraco em que se transformou a minha vida.
Gustavo pensou que aquele homem lhe podia ser muito útil, podia convencê-lo a simular uma agressão contra si e a fugir com o seu carro. Ele mataria Helena e depois armar-se-ia em vítima e correria para a vila culpando o desconhecido pela agressão de que fora vítima e pela morte de sua mulher. Ficaria livre e rico e casaria com Madalena, o seu amor de sempre.
Subiu da cave com toda a tranquilidade e disse a Helena:
- Não há nada na cave, minha querida, isso é tudo fruto da tua imaginação.
- Mas eu ouço barulhos e desapareceu comida da cozinha.
- Não pode ser, só cá estamos nós, com certeza só havia aqueles pacotes de bolachas no armário. Era talvez algum animal que já fugiu. Vamos dar uma volta, um passeio a pé pela região, vais ver que te faz bem.
Passaram o serão a ver televisão e ela esqueceu os ruídos da cave, até porque, por mais que apurasse o ouvido, nada se ouvia.
No dia seguinte estavam os dois na sala quando um homem, munido de um pedaço de madeira entrou subitamente. Helena gritou e correu para a cozinha enquanto Gustavo simulou atacar o homem que lhe respondeu com uma pancada na cabeça, deixando-o desmaiado. Quando voltou a si Gustavo viu, com horror, o homem estatelado no chão com um lenho aberto na cabeça, a sangrar e Helena a chorar, encostada na porta da cozinha com o moinho antigo de pedra na mão.

FCPorto campeão 2010-2011

segunda-feira, março 28

Laboratório de escrita criativa - nível avançado - bloco 5

Exercício - Bloco 5

Escreva um texto de cerca de vinte linhas que corporize o esquema ficcional sintetizado por Jorge de Sena na Adenda temática A (e que diz respeito ao romance Oriente-Expresso de Graham Greene). Pode, no entanto, substituir o ambiente exterior ao comboio – que prefigura a iminência da Segunda Grande Guerra Mundial – por um outro igualmente revelador de uma imensa e densa clivagem.

Exercício:

O comboio entrou lentamente na estação caótica. Pessoas acotovelavam-se correndo de um lado para o outro, crianças choravam, o homem do realejo tocava, um cego pedia esmola, gritando, encostado à porta aberta. Todos temiam a onda que se aproximava e que iria destruir tudo à sua passagem, não deixando uma folha verde sobre a terra. Todos esperavam o comboio que os levaria para longe da destruição, a procurar noutro lado uma outra forma para recomeçarem a vida, o primeiro dia do resto das suas vidas.
Das janelas da primeira carruagem o grupo olhava, imóvel, a enorme confusão do exterior. O ruído chegava abafado pelos vidros duplos, a própria visão era desfocada pela névoa que envolvia a estação, como um véu. Cada um deles transportava o seu próprio inferno pessoal, o seu caos interior, que o do exterior parecia apaziguar. 
Viajava naquela carruagem, um grupo heterogéneo, o casal que já se amara e agora se odiava, a mãe dela, senhora idosa desesperada com a passagem do tempo, inundada pela angústia de tudo o que podia ter sido e não fora, o pai dele, atormentado pelas visões da sua passagem pela guerra, dos homens que vira agonizar à sua frente, sem nada poder fazer. No banco da frente recostava-se, ensimesmada, a adolescente mergulhada nas hesitações da idade, nos dramas do crescimento. 
A mole humana do exterior aproximou-se imediatamente do comboio assim que ele estacou. Todos queriam entrar, fugir, escapar o mais depressa possível à nuvem de gafanhotos que, qual praga do Egipto, se aproximava para destruir tudo, todas as colheitas, todo o trabalho de vidas.

segunda-feira, março 21

Dia mundial da Poesia

Bebido o luar, ébrios de horizontes,
Julgamos que viver era abraçar
O rumor dos pinhais, o azul dos montes
E todos os jardins verdes do mar.

Mas solitários somos e passamos,
Não são nossos os frutos nem as flores,
O céu e o mar apagam-se exteriores
E tornam-se os fantasmas que sonhamos.

Por que jardins que nós não colheremos,
Límpidos nas auroras a nascer,
Por que o céu e o mar se não seremos
Nunca os deuses capazes de os viver.

Sophia de Mello Breyner e Andresen

domingo, março 20

Laboratório de escrita criativa - nível avançado - bloco 4

Exercício - Bloco 4

Crie três a cinco imagens que utilizará num texto ficcional ainda por escrever. A fábula pressupõe o encontro fugaz de um homem e de uma mulher numa área de serviço. Durante quatro anos, sem saberem nada um do outro, encontram-se no motel dessa área de serviço no dia 16 de cada mês impar. O esquema falha apenas cinco vezes, durante esse longo período. No final, quando a mulher do protagonista descobre que tem uma irmã (apenas do lado do pai), os amantes vêem-se subitamente numa festa familiar. A aventura parece acabar de repente, mas, um dia, a casa do casal mais feliz de Alcochete aparece desfeita em chamas (cada imagem deverá ser sucintamente descrita em não mais do que cinco a seis linhas).

Exercício:

Imagem 1

Segundos, minutos, horas, dias, meses, quatro anos passaram e eles encontravam-se naquele motel frio e impessoal daquela área de serviço, mal se conhecendo, só os seus corpos se reconheciam.  As voltas do destino provocaram um encontro a propósito de uma meia-irmã subitamente encontrada, os encontros fortuitos perderam o encanto e terminaram queimados no angustiante incêndio que destruiu aquela casa.

Imagem 2

Os encontros fugazes num motel anónimo da mesma área de serviço, sucederam-se a uma cadência mensal, poucas vezes quebrada, ao longo de quatro anos. Eram encontros quase sem palavras, era o quase anonimato que os atraía, que os excitava. A alegria da descoberta de um novo membro da família dela foi ensombrada pela constatação de que ele era o cunhado. A relação queimou-se, tal como a casa do casal desfeita por chamas súbitas.

Imagem 3

Aquele motel anónimo incendiava-se uma vez por mês quando os seus corpos se encontravam e mergulhavam numa paixão sem palavras. A felicidade da descoberta de um vínculo familiar fez a paixão crescer, reforçou os laços entre ambos. Esconder dos outros os laços que os uniam era afrodisíaco. As miradas cúmplices, os sorrisos subtis, transfiguraram-se em horror diante do quadro das chamas devoradoras que destruíram a casa.

Laboratório de escrita criativa - nível avançado - bloco 3

Exercício - Bloco 3

Continue a narrativa de Italo Calvino (Adenda temática B), tentando articular o seu texto com um dos condimentos aristotélicos expostos mais acima (seja oriundo da Poética ou da Retórica; ver Adenda temática A).
Quando tomava banho numa praia ocorreu à Srª. Isotta Barbarino um desagradável contratempo. Nadava ela ao largo, quando, parecendo-lhe altura de regressar, e já se dirigia para a margem, se apercebeu de que um facto irremediável acontecera. Perdera o fato de banho.

Exercício:

Achou que a sua imaginação lhe estava a pregar partidas. Como fora possível ficar sem fato de banho sem ter dado por isso? Mas a verdade é que estava nua. Olhou à volta, desnorteada, como se o fato de banho fosse aparecer a boiar, como por milagre. 
Deu algumas braçadas, pensando como sair airosamente daquela situação, eram dez da manhã e não podia ficar na água até a praia ficar deserta. De repente avistou a uns metros de distância um volume claro que não conseguia identificar por causa do sol, nadou vigorosamente para lá para se deparar com um saco plástico com uma garrafa de água mineral vazia. 
Começou a pensar em voltar à praia assim como estava, talvez encontrasse algumas algas que lhe permitissem tapar-se minimamente até pedir auxílio ao salva vidas. Quando ia recomeçar a nadar viu aproximar-se um bote de borracha e dentro dele alguém que não conseguia identificar porque o sol a encadeava, ia pedir ajuda mas limitou-se a fitar, boquiaberta, o tripulante do bote, o Capitão Gancho, que trazia, preso no gancho que lhe servia de mão, o seu fato de banho e lhe disse com ar severo:
- Vista-se, nestes mares só as sereias podem andar nuas. A sereia, na popa do bote, sorriu-lhe suavemente e começou a cantar.

quinta-feira, março 10

Laboratório de escrita criativa - nível avançado - bloco 2

Exercício - Bloco 2
Imagine que Atla (ver Adenda temática A) não chegou nunca a morrer, apesar de o início o romance começar justamente por narrar a sua morte. Escreva a parte do enredo que daria alegadamente conta da reacção dos personagens, evocados na Adenda temática A, ao terem conhecimento de uma tal notícia (não ultrapasse as vinte linhas).

Exercício:
Os homens juntaram-se na taberna diante do porto velho. O sol desaparecia, avermelhado, na linha do horizonte. Atla surgiu, recortada contra o poente, os caracóis com reflexos acobreados pelo sol emolduravam-lhe o rosto sorridente. De repente, quando entrou no ângulo de visão dos pescadores as gaivotas desapareceram, os olhos de todos, incrédulos, fixaram-se nela, dois ou três soergueram-se, mirando-a, incrédulos, outro avançou um passo inseguro na direcção da porta, a um canto um barbudo engoliu a bebida de um trago, o taberneiro ficou suspenso, o pano imundo com que limpava o balcão, esquecido a um palmo deste.
Atla! - gritaram todos em uníssono.
Algumas portas adiante da taberna, as mulheres envoltas nos xailes escuros movimentaram-se também, incrédulas, uma mancha negra e agoirenta. Ouviram o grito dos homens e, adivinharam mais do que sentiram nele, o júbilo que fez recrudescer o ódio que se tinha apaziguado quando a julgavam morta. Uma escarrou com violência e a saliva bateu no empedrado do chão como uma bala. Ouviu-se murmurar entre dentes: - Puta de sorte, ela não morreu. Voltavam a ter os seus homens pela metade, sabiam que eles continuariam a suspirar secretamente por ela e a inveja corroía de novo as suas almas, como um ácido mortífero.

sábado, março 5

Tentando fotografar um melro preto

Contra o sol só me via a mim no ecrã do iPhone e não me podia aproximar muito ou ele voava, mas consegui :)




segunda-feira, fevereiro 28

Laboratório de escrita criativa - nível avançado

Iniciou-se esta semana o curso Laboratório de Escrita Criativa, desta vez o nível avançado.
O primeiro trabalho era:

“1 – Desenvolva a fábula a partir do curtíssimo enredo criado por Thomas Bernhard (“… um rapaz levou o cão a passear… com a trela. Depois quis subir a qualquer lado, puxou infelizmente a trela por cima da cabeça, o cão continuou provavelmente a correr mais três passadas e o rapaz ficou estrangulado”). Ou seja: relate – ainda que esquematicamente – o corpo da fábula que terá dado origem ao enredo lacónico e paródico redigido por Bernhard na Adenda temática C ( ver aqui em baixo ). Não ultrapasse um máximo de quinze linhas.”
“Conversão por Kurt Hofmann.”
“Quando escrevo, escrevo em toda a parte, onde quer que seja, é indiferente. Posso escrever num restaurante, posso escrever numa casa alugada, posso escrever em Paris no meio do trânsito, é-me absolutamente indiferente. Quando chega o momento, isso não me incomoda absolutamente nada. A questão é só, quando é que chega o momento. O que eu não posso é começar onde houver sossego e não acontecer nada, porque não posso entrar na questão. Preciso primeiro que tudo de estímulos e de qualquer incidente caótico ou algo de semelhante. O caos acalma. A mim de qualquer modo. E no jornal é realmente tudo caótico. Só que é muito fatigante, porque é preciso converter tudo. É preciso primeiro traduzir em fantasia. Hoje está no jornal que um rapaz levou o cão a passear — você leu? — com a trela. Depois quis subir a qualquer lado, puxou infelizmente a trela por cima da cabeça, o cão continuou provavelmente a correr mais três passadas e o rapaz ficou estrangulado. Não foi? Algo deste género se imagina depois. Agora, quando se descreve isto assim, é uma idiotice, porque não é nada de especial. Lá se tem de o converter ou de inventar qualquer coisa para lhe acrescentar.”
(Kurt Hofmann, Em conversas com Thomas Bernhard, Assírio e Alvim, Lisboa, 2006, p.33)

Trabalho:

As noites quentes de Agosto, na ilha, não o deixavam ter um sono descansado. A humidade colava-lhe os lençóis ao corpo, o sono, quando conseguia dormir, era agitado por sonhos recorrentes, estranhos. Os problemas conjugavam-se com o clima húmido e quando amanhecia levantava-se atordoado, cansado, quase mais cansado do que quando se deitara. 
Essa noite não era diferente das outras, apesar de uma leve brisa agitar as cortinas, não refrescava, era uma brisa quente, impiedosa. Voltou-se na cama que rangeu, irritando-o, desabafou-se e tentou esvaziar o cérebro de pensamentos, era necessário dormir para poder desempenhar cabalmente as suas funções na manhã que se aproximava. 
Adormeceu por fim para acordar logo a seguir, ou pelo menos assim lhe pareceu. Sonhara que passeava com o seu cão, que o levava pela trela e que chegava ao cimo de um monte, ia subir a uma pedra e… acordou. Voltou-se na cama e adormeceu de novo para acordar sobressaltado daí a pouco. Tinha retomado o sonho no exacto momento de subir à pedra, levava o seu cão, pela trela, subia  ao cimo do monte e trepava a uma pedra e de repente puxava a trela por cima da cabeça para ver melhor para além da pedra mas o cão correra ainda um pouco, duas, três passadas e ele morria estrangulado. Sentia-se sufocar, correu para a janela...

sábado, janeiro 22

LEC final

Tabalho de avaliação sumativa

Redija um texto de não mais do que 2000 caracteres, de acordo com as seguintes indicações:
a) Tema/Tópico: P. chega a uma nova cidade.
b) Descrição: inserção de uma dimensão expressionista no início do texto.
c) Narração: Aplicação da lógica ‘media res’ no final do texto.
d) Poética: Criação de ritmo, de acordo com os pressupostos estudados no Bloco 10, nos parágrafos intermédios do texto.
e) Redija o seu texto de modo depurado, evitando o uso excessivo de afectação adjectivada, de substantivação abstracta e de registos explicitamente coloquiais.

Trabalho


A cidade amanhecia quando Pedro se apeou do táxi. Era a sua primeira vez e ficou desde logo preso à luz especial que banhava as ruas e praças, de casas baixas e brancas, com telhados cor de ardósia. 
Dirigiu-se ao meio da praça, de onde, junto ao chafariz, podia avistar as várias ruas que nela confluíam. Acima do telhado da igreja dos Jesuítas avistou o casario que trepava até às montanhas, pontilhando o verde da vegetação. Agradava-lhe a calma das ruas apesar do incessante corrupio de transeuntes e dos carros apressados. No café fronteiro algumas pessoas aproveitavam o sol matinal enquanto tomavam o pequeno-almoço, alguns taxistas, encostados à parede de cantaria da escada que dava acesso à igreja discutiam as incidências do jogo de futebol do dia anterior.  Um grupo de meninos do jardim-escola passava, em fila Indiana, dois a dois, com os bibes aos quadrados e os chapelinhos azuis, serpenteando pelo passeio.
As crianças recordaram-lhe a razão para ali estar, viera dar aulas numa escola primária e, de certo modo, fugir de uma vida agitada numa cidade grande e conhecer gente nova, ainda mais aquela gente que diziam ser tão acolhedora.
Pensou no percurso que fazia diariamente de casa até à escola, a caminhada apressada até à estação de metro, sempre apinhada, a diversidade de pessoas que consigo viajavam, a própria viagem, umas vezes apertado entre uma senhora anafada e um homem barbudo, outras entre grupos de estudantes e de empregados de escritório, as faces quase sempre resignadas, pensativas, tristonhas, o cheiro a transpiração, as paragens até chegar à estação de saída, o mergulho no movimento constante de peões apressados e bruscos, a quase corrida até à paragem de autocarros, mais uma viagem, muitas vezes de pé, até à paragem mais perto da escola e ainda assim a 15 minutos de caminho. E o mesmo na volta, ao fim do dia, com o cansaço acumulado do dia de aulas difícil e exigente.
- Mas porque vais para tão longe?
A pergunta da mãe ainda ressoava nos seus ouvidos, respondera que queria uma vida mais calma, numa cidade mais pequena e tranquila, mas não era só isso, era também a fuga à saudade, à dor, à tristeza. Era a recordação daquele passado, as palavras que não pronunciara, que não pronunciaria, o medo de ser mal interpretado, o terror da rejeição.

LEC 10

Exercício da semana - 10

Rescreva o texto de António Lobo Antunes (“Exemplo A”), utilizando igualmente a repetida regência “Como se não bastassem”, mas tendo agora em vista a atmosfera observada ou imaginada por si numa praça de uma grande cidade (ou noutro qualquer cenário banhado por uma multidão).

Trabalho

Como se não bastasse a chuva irritante e fria que cai sem cessar, o mendigo que toca no acordeão uma música monocórdica, o buzinar impaciente dos automobilistas, a horda de pessoas que passam em todas as direcções, apressadamente, como se não bastasse o cauteleiro a apregoar os números da lotaria, o bando de pombos a debicar febrilmente o milho que uma senhora, de andar lento e compassado, lhes atirou, como se não bastassem as pessoas que se atropelam e acotovelam para entrarem no autocarro, na ânsia e no medo de não chegarem a tempo ao emprego, os que saem cabisbaixos e derrotados do centro de emprego, sem respostas, sem saídas, como se não bastassem as beatas que saem, estremunhadas, da igreja depois da missa matinal, encolhendo-se debaixo dos guarda-chuvas, como se não bastassem os estudantes que gargalham e palram ruidosamente, o futuro está aí irremediável e inadiavelmente próximo.

LEC 9

Exercício da semana - 9

Redija vários textos com apenas uma a duas linhas onde deverá alinhar palavras por si escolhidas que ilustrem ou traduzam a ideia de:

a) O som do rio que corre.
A sensação de tempo perdido.

Atenção: não se trata de descrever o local onde “o rio corre”, ou onde tem lugar a “conversa tempestuosa”, ou ainda onde foi vivida a sensação de “tempo perdido”. Nem se trata de narrar o incidente no qual a “pessoa X” esperou por algo, nem o que estaria a acontecer no momento em que um determinado “olhar” foi “trocado na via pública”. Trata-se, sim, de traduzir esses estados de alma - que são da ordem da intimidade - por sequências de palavras, de tal modo que o leitor possa sentir uma empatia rítmica, ou rever esse mesmo estado de alma através das palavras utilizadas. 
Trata-se, por outras palavras, de um exercício poético. 
Sinta-se livre, deixe chegar ao seu rascunho dezenas de palavras e alinhe, depois, as que bem entender tendo em vista o ritmo e a ‘musicalidade’ ideais para cada caso (sinta-se o “som da água do rio”, sinta-se o pedaço de tempo “perdido” ou “esperado”; sinta-se o próprio “olhar” que se troca e… sinta-se como se fosse a “tentação” ou o “silêncio” subitamente vivido).

Redija, na segunda parte deste exercício, vários pequenos textos (com cerca de duas linhas no máximo) que traduzam uma ambiência similar à que esteve presente na imaginação de José Tolentino Mendonça, quando escreveu os seguintes versos (extraídos de vários poemas de Baldios, Assírio & Alvim, Lisboa, 1999):

c) “A obscuridade brilha para lá/ da própria enseada” (A Casa);
d) “Contra o coração/ abraçava ramos de flores magras e azuis/ sentimentos muito triviais/ e por vezes a maior escuridão” (Fogueiras e gelos);

Atenção: concentre-se na auto-referencialidade dos termos que vier a utilizar. Quando escolher as palavras, interiorize-as como termos realmente independentes e autónomos, como puras sonoridades à procura de um corpo desejado.
Liberte-se das significações dadas e atribuídas aos vocábulos no senso comum, no âmbito da convenção, ou no quotidiano. Utilize o seu léxico como se fosse um criativo de design, sendo que a sua cultura material, neste exercício, é o próprio material linguístico.
Não se esqueça de ser corrosivamente livre no seu jogo de rascunhos.
Escreva e reescreva sem temor, desinibidamente.
Repita-se: reescrever de modo poético é reinventar, apenas isso. A única fidelidade que não deverá esquecer é a do “ambiente”, a da “atmosfera” ou a da “intimidade” que o léxico utilizado pelo autor - neste caso, José Tolentino Mendonça - terá traduzido.

Trabalho

a) O som do rio que corre.
Saltitante sussurro cantante
Murmúrio da corrente, quase silêncio
Águas bramindo em fúria


b) A sensação de tempo perdido.
Relógio parado inerte
Sala vazia, silêncio sepulcral, vida inanimada
Tic … tac … tic … tac … tic … tac ...

c) “A obscuridade brilha para lá/ da própria enseada” (A Casa);
Escuridão pontuada pelo brilho da lua reflectida nas águas mansas da baía sossegada, ânforas perfeitas de claridade suave
Barcos que baloiçam na calma enseada, brisa brilhante que sopra contínua e murmurante, as nuvens que se espalham, escuras, destacando a luz que a brisa esfarrapa
Na linha do infinito, onde o mar se confunde com o céu como se fosse um só corpo ondeado, as estrelas cintilantes iluminam a obscuridade azul

d) “Contra o coração/ abraçava ramos de flores magras e azuis/ sentimentos muito triviais/ e por vezes a maior escuridão” (Fogueiras e gelos);
Colhera um ramo de miosótis e apertava-os agora contra o peito, embalados pelo bater desordenado do coração, movido por sentimentos contraditórios de amor e ódio.
Vendaval de sensações, de emoções, transbordantes, calmaria e tempestade, luz e escuridão, sol e eclipse, as flores azuis, da cor do céu e do frio.
As centáureas e as tumbérgias misturavam-se numa miríade de azuis que ela abraçava enquanto a invadiam ondas de sentimentos

LEC 8

Exercício da semana - 8

Alie a descrição à narração num curto “incidente”, subordinado à seguinte situação ficcional: “Foi o ciúme que impediu Raul de dormir” (não ultrapasse um máximo de sete a oito linhas).

Trabalho:

No quarto mergulhado na escuridão, aliviada apenas pelo piscar ténue do anúncio de néon do café da frente, Raul não consegue dormir. Enovelado na cama, de lençóis ensopados de suor, é incapaz de deixar de pensar naquilo, durante toda a noite viu a cena como na tela de um cinema, sempre a passar-lhe na frente dos olhos, tinha sido só um olhar mas ele via-o como todo um mundo de intenções e de desejos, de promessas que, a ele, nunca tinham sido feitas. Caminhava pela marginal com Rita quando se cruzaram com Mariana e sentiu, quando elas se olharam, que estava definitivamente a mais, que aquele não era o seu lugar e apesar da conversa banal que se desenrolou entre ambas, aquela impressão persistiu e impediu-o de dormir.

LEC 7

Exercícios da semana - 7

Imagine que o “Texto 1”, escrito para o “Exercício 6” (na semana passada, escrita homodiegética), era apenas o início de uma longa história cuja complicação afinal é longa e cujo desfecho é seguramente inimaginável. Dessa narrativa possível, redija apenas a parte correspondente ao “clímax” (não ultrapasse um máximo de doze a quinze linhas).

Trabalho:

Caminho em direcção ao elevador acompanhada pelo eco dos meus passos no cimento. Enquanto espero que ele chegue noto no chão uma mancha escura, parece um pingo de ferrugem. Quando a porta se abre já me esqueci da mancha mas relembro-a logo porque vejo marcas de dedadas da mesma cor, mas mais viva, junto ao botão do terceiro andar e no chão. Carrego com todo o cuidado no botão evitando o contacto com a substância que, agora com luz e mais de perto, parece ser sangue. 
O elevador pára, a porta abre-se, antes de sair olho para o chão e vislumbro nele, à fraca luz do exterior, não manchas mas pequenas poças da mesma substância, cada vez mais penso em sangue, não sei se devo sair do elevador, o pânico começa a crescer, sinto-o em ondas, sufoco um grito, não vejo vivalma, alcanço o interruptor e o hall ilumina-se. Agora vejo nitidamente que há manchas em ziguezagues que vão até à esquina. Não sei se avanço ou não, continuo com medo, sinto uma presença na zona que não consigo ver, mas não posso continuar ali, posso correr perigo, podem ter assaltado alguém do prédio, preciso arriscar e alcançar a minha porta e a segurança do meu apartamento. Avanço em direcção à porta e, de repente, vejo-o no chão.

LEC 6

Exercício da semana - 6

Escreva um pequeno texto que traduza, em cerca de dez linhas, um dos seus itinerários mais rotineiros (ida para o emprego ou para a universidade, regresso a casa ao fim da tarde, ida às compras, regresso de casa de um amigo, etc.).
Transponha esse texto para os três tipos de ponto de vista que estudámos neste Bloco: homodiegese, heterodiegese, e prática polifónica.

Trabalho:

Homodiegese

Está na hora de regressar a casa depois de mais um dia de trabalho. São 18h15m de um dia chuvoso de Novembro, a noite começa a lançar o seu manto sobre a cidade quando mergulho no trânsito. 
Parada no semáforo fronteiro à EEM observo o paquete todo iluminado que parte do porto rumo ao desconhecido e invejo aqueles que partem a caminho de outras descobertas. 
O vermelho passa a verde, e a fila de carros serpenteia, devagar, passando pelas filas de pessoas que esperam pacientemente o autocarro que as há-de levar a casa. Estudantes, aos magotes saem da Cristóvão Colombo, O resto do caminho é relativamente rápido, estou já frente à garagem, espero que a porta, accionada pelo comando automático se abra e estaciono no meu lugar.
Caminho em direcção ao elevador acompanhada pelo eco dos meus passos no cimento.

Heterodiegese

As aulas terminaram e ela dirige-se apressada para o carro fugindo à chuva miúda que teima em cair. As noites de Novembro são longas, pensa, enquanto mergulha no trânsito, já é quase noite.
Enquanto espera que o semáforo passe de vermelho a verde, mira o paquete que sai do porto e pensa em como seria bom ir nele, conhecer outras paragens, outros portos.
O avançar lento do trânsito dá-lhe tempo de observar as pessoas que esperam o autocarro nas paragens da Avenida do Mar, parecem-lhe pacientes mas pode ser só cansaço. Mais um quilómetro e vê, pelo canto do olho, os estudantes da Cristóvão Colombo que saem das aulas conversando e rindo.
Ao chegar à frente do prédio abre, com um gesto automático a porta e estaciona no seu lugar. Os seus passos perdem-se, ecoando, na direcção do elevador.

Prática polifónica


Saída da escola apresso-me em direcção ao carro passando entre as conversas dispersas.
- O meu filho está com uma otite, até pensei em faltar hoje.
A noite cai agora tão cedo, é Novembro, cai uma chuva miudinha, irritante.
- A professora foi injusta comigo, eu não estava a fazer nada, não achas?
- Mas que queres, acho que ela não gosta de ti, tomou-te de ponta!
O interior do carro é confortável e percorro a avenida lentamente, até dá para observar o paquete que sai e se dirige para o mar alto, todo iluminado, vontade de partir também.
-O autocarro nunca mais vem, ainda tenho jantar para fazer e roupa para engomar.
- Olha o Benfica lá conseguiu ganhar depois das derrotas com o Porto e o Hapoel.. Não vale sequer a pena comprarmos o jornal, amanhã na escola lemos na internet.
Chego finalmente a casa ainda com os ecos dos farrapos de conversas e dos meus passos no cimento.

LEC 5

Exercício da semana - 5

Leia atentamente o texto (em baixo) de José Rodrigues Miguéis.

Escreva dois epílogos, ou dois desenlaces, para o texto de José Rodrigues Miguéis, de acordo com a máxima acima referida: “dar ao leitor o que ele quer, mas não da forma como ele espera”. Não ultrapasse, em cada um dos textos, o máximo de oito a dez linhas.

“Fica o número 13...

Com este número odioso gravado na retina, ponho-me a andar a toda a pressa. Procuro as ruas mais estreitas, onde há menos luz e o movimento é menor. Na penumbra, avultam carroças de muares enormes e tranquilas roendo o jantar com as cabeças mergulhadas nas alcofas. Junta-as gente nas tabernas, donde sai um rumor grosseiro de vozes e de louças que se entrechocam, e um fumo acre de azeite queimado e peixe frito. Um fumo azul... Olho o céu: é noite fechada e, por cima dos telhados, alastra o clarão sanguíneo das luzes e passa confuso o clamor das buzinas dos autos.
- Perdão, queira desculpar...

Um moço de casaco amarelo esbarra comigo, ao sair duma tabacaria para pôr os taipais. São horas de fechar. Entro e peço um copo de água. Há luz de gás, como noutro tempo. Lembrou-me agora a Baixa vasta e sossegada, que a melancolia verde do gás iluminava, a Baixa da minha infância, com o seu ar tão simples e honesto, limpa e discreta... E sinto saudades.”

(José Rodrigues Miguéis, Páscoa Feliz, Estúdio Cor, Lisboa, 1974)

1 - “O Quê”: a própria ocorrência, os eventos que se actualizam no tempo. Proposta de emprego escolheram o número 13 e Tomás que era o número 5 foi rejeitado vagueia pela cidade a remoer o insucesso
2 - “Quem”: personagens (que geralmente se opõem e digladiam); - Tomás e empregado da tabacaria
3 - “Como”: o modo como se desenrolam as ocorrências;
4 - “Quando”: o momento em que tem lugar a ocorrência; 9 da noite
5 - “Onde”: a topografia onde se inscreve a ocorrência; ruas estreitas, parcamente iluminadas de Lisboa, calçadas, estreitas, casas baixas, antigas
6 - “Porquê”: a causa, a razão, ou o motivo que originou a ocorrência;
7 - “Porque”: consequência, ou súmula de resultados da ocorrência. 

Trabalho:

Epílogo 1

… E sinto saudades. 
Sinto saudades da infância, da vida pacata, das brincadeiras na rua com os amigos. São nove da noite e cá estou eu, ao balcão da Tabacaria no meio da praça, olhando as ruas estreitas, parcamente iluminadas, de casas baixas, antigas. Quero entabular conversa com o empregado mas a minha boca está seca, a água desce a custo pela garganta, o número treze continua a martelar-me a cabeça. Preciso que me salvem dos meus pensamentos, da demência, uma ocupação que me livre da obsessão que continuo a sentir pelo passado, pelo que foi, pela vida regrada, pelo emprego excelente que me proporcionava tantas regalias e que perdi naquele pano verde, na roleta, o maldito número treze.

Epílogo 2

… E sinto saudades.
O café decadente onde entrei está praticamente vazio, só um velho com roupa surrada, ao canto, fuma um cigarro sonolento. Sinto que o medo me invade, não devia ter estado naquele lugar àquela hora, agora a minha vida não vale nada, serei perseguido por todos os membros da irmandade, eles não perdoam a traição, tive o azar de estar no lugar errado à hora errada, treze horas e treze minutos, sinto passos apressados que se aproximam, os tacões batendo ritmicamente na calçada da rua estreita e escura, ela entra de súbito no café e olha-me sem piedade, sinto que a minha vida está prestes a terminar, que nada me salvará do inferno, olho-a procurando ainda um resquício de perdão mas ela é implacável e, num movimento imperceptível, atira a faca que atravessa a sala e se crava no meu coração.

LEC 4

Exercício da semana - 4

Reescreva o ambiente de um conjunto de caçadores (ou de escuteiros ou de ecologistas - escolha à sua vontade) a avançar pelo campo virgem e selvagem. Reutilize algum do léxico utilizado no “Exemplo A” (texto de Mário Ventura).
Não ultrapasse as sete ou oito linhas.

Trabalho:

O grupo de caçadores, antecedido pelos cães arfantes, avança pelo campo pintado pelos tons castanho-avermelhados do Outono. As folhas secas dos álamos, dos plátanos e de muitas outras espécies que atapetam o chão, vão estalando levemente sob os seus passos, enquanto se ouve, ao longe, o rumorejar do regato. Avançam com cuidado, atentos, empunhando as espingardas, os cães a farejar as presas, em busca dum bando de perdizes, por entre as estevas. De súbito os cães começam a ladrar e desaparecem no meio dos arbustos, uma leve brisa murmura por entre as árvores e um bando de perdizes levanta voo. O ar, até aí só povoado pelos sons da natureza, enche-se de estampidos secos e várias aves caem, ceifadas em pleno voo pelos tiros.
  

LEC 3

Exercício da semana - 3

Recrie o estimulante texto (em baixo) de José Rodrigues Miguéis, reescrevendo-o por duas vezes (podendo, em ambas as situações, adicionar ou subtrair palavras, de tal modo que os textos acabem, no final, por reflectir dois tipos diversos de descrição de personagens).

O primeiro deverá focar o movimento de fora para dentro (dando mais atenção aos motivos e aos estímulos ocasionais exteriores à personagem - procedimento dominantemente impressionista).

O segundo deverá focar o movimento de dentro para fora (reinventando a alma da personagem e dando assim mais atenção às suas possíveis mundivivências interiores - procedimento dominantemente expressionista).


“Madame Lambertin era flamenga à vista desarmada, e de maneiras bastante livres, mas com certa tinta bondosa. Devia passar bem dos trinta. Quando sorria, o sorriso enchia-lhe a cara toda. Tinha os olhos verdes e bastante vivos. Da janela do meu quarto passei a vê-la atravessar todos os dias a rua, a caminho da brasserie da esquina, em frente, onde ia aplacar um deus insaciável. Voltava com uma cabazada de garrafas de Gueze. Chegava a beber (soube-o depois) às dezoito e vinte por dia. Era decerto o que lhe estragava a frescura, ainda apreciável através da retícula vermelha que já lhe bordava as faces.”

(José Rodrigues Miguéis, Léah e Outras Histórias, Editorial Estampa, Lisboa, 1960)

Trabalho:

Texto 1

Todos os dias, da janela do meu quarto, a via passar. Madame Lambertim era alta, roliça e andava como se flutuasse por entre espigas de trigo maduro. Na face oval e rosada - emoldurada por caracóis ruivos que caíam suavemente, desmanchando-se, nas têmporas - destacavam-se os seus olhos verdes, líquidos e a boca de lábios rubros, carnudos, que se abria num sorriso amplo que a iluminava. Atravessava a rua na rotina diária de se dirigir à brasserie da esquina, onde se abastecia da sua bebida preferida, a cerveja Gueze, que bebia em quantidades generosas sem se preocupar com a teia de linhas vermelhas que lhe iam cobrindo as faces e tirando a frescura das suas mais de trinta primaveras.

Texto 2

Madame Lambertim, os seus olhos verdes emanando uma certa bondade, a vivacidade do seu caminhar, leve, flutuante. Uma doçura e um frescor de fruta silvestre. Quando todos os dias se dirigia à brasserie da esquina fazia-o com um sorriso largo estampado na sua face de pele translúcida, transpirando felicidade. A Gueze que todos os dias tomava desenhava-lhe nas faces linhas vermelhas, bebia-lhe a frescura e o vigor dos seus trinta e tal, quase quatenta anos, a plenitude outonal da sua beleza.

LEC 2

Leia atentamente (em baixo) este belo texto de Ferreira de Castro.

Reescreva-o duas vezes, tentando manter a sua dimensão (mais ou menos seis linhas). 

Na primeira recriação, faça com que o texto de Ferreira de Castro se transforme numa descrição dominantemente objectiva. 

Na segunda recriação, faça com que o texto de Ferreira de Castro se transforme numa descrição dominantemente subjectiva.


“Com a chuva, a neblina ia-se rasgando, descendo, separando-se em farrapos e deixando a descoberto trechos de terra, como se dum mar de espuma surgisse um arquipélago. Sobre as pedras lavadas apareciam as mulheres; retardatárias, que caminhavam, apressadamente, em direcção à igreja, uma das mãos no guarda-chuva, a outra a levantar um pouco as saias, para que a água não as esparrinhasse. Não se via o rosto de nenhuma delas.”
Ferreira de Castro, A Missão - 3 novelas (A Experiência), Guimarães & Cª., Lisboa, 1954

Trabalho:
L
Descrição objectiva

Conforme a chuva cai, a neblina rasga-se e desce, vai-se separando e mostrando vários trechos de terra. No caminho de pedra, molhado, algumas mulheres caminham, em direcção à igreja, vão apressadas, quase a correr. Numa das mãos trazem o guarda-chuva enquanto levantam com a outra as saias para que a água não as molhe. Não se via o rosto de nenhuma delas.

Descrição subjectiva:

A chuva cai intensamente levando a neblina a rasgar-se e a ir descendo, esfarrapando-se e pondo a descoberto vários trechos de terra, como se várias ilhas surgissem de um oceano de espuma. Sobre as pedras molhadas e escorregadias do sinuoso caminho, passam, apressadas, várias mulheres com o rosto coberto pelos guarda-chuvas que transportam numa das mãos, enquanto que, com a outra, levantam ligeiramente as saias, tentando protegê-las para evitarem que elas se molhem.

LEC 1

Exercício da semana - 1 
Imagine que se encontra num barco que começa a afastar-se de Lisboa (ou de outra qualquer cidade fluvial ou marítima). Faça uma descrição da cidade que tem na frente dos seus olhos (como se a cena se passasse fora do tempo. Isto é, como se descrevesse o que vê num ecrã de vídeo parado e onde o tempo está em suspenso. Limite-se, pois, neste exercício, a representar o espaço, seleccionando os elementos mais pertinentes e as naturezas ou “qualidades” mais variadas).

(por uma questão de necessária economia expressiva, solicita-se que não ultrapasse as dez linhas, ou seja, os 800 caracteres)

Trabalho

O Lobo Marinho afasta-se do cais acompanhado pelo grito estridente das gaivotas. O mar está calmo, embora aqui e ali se avistem cristas brancas de espuma que o vento levanta,  Perante os olhos dos passageiros que se juntam na amurada, o Funchal emerge da luz mágica do amanhecer, as casas brancas faiscando, encimadas por telhados vermelhos, ponteando as encostas de vários tons de verde que vão do esmeralda ao quase negro. Mais uma cor se junta a estas, o cinza das estradas que serpenteiam encosta acima e se entrelaçam com os farrapos de nuvens que, como linhas emaranhadas, se erguem dos vales profundos em direcção ao céu povoado de nuvens avermelhadas pelo sol.

LEC

Iniciei em Outubro o curso de ensino à distância do Instituto Camões -Laboratório de escrita criativa- nível introdutório, vou colocar aqui no blog os enunciados e os trabalhos que realizei e pretendo fazer o mesmo com o de nível avançado que se inicia a 15 de Fevereiro.