segunda-feira, maio 9

Laboratório de escrita criativa - nível avançado - bloco 10

O bairro da periferia contrariava as estatísticas que proclamavam a descida abrupta da taxa de natalidade. O grupo de meninos tinha andado a namorar durante dias o alto muro que ficava no fundo do bairro, não sabiam o que estava do outro lado, só o imaginavam pelo estonteante aroma a maçã que se evolava no ar. 
Reuniram-se para combinar uma estratégia e decidiram unanimemente fazer o que todos os meninos em todas as partes do mundo fazem, desde tempo imemoriais, saltar o muro para roubar maçãs.
Quando desceram, do outro lado do muro, encontraram um mundo totalmente diferente, um jardim encantado, com muitas árvores de fruto, na sua grande maioria macieiras plantadas por entre flores silvestres.
Até onde a vista alcançava viam-se anjos e arcanjos, louros e rosados,com asas douradas brilhantes esvoaçando entre as árvores e as flores, competindo com os pássaros e as borboletas. Alguns, em grupo, conversavam e riam dos seus chistes, enquanto comiam bolos coloridos que apanhavam de algumas árvores.
Os meninos ficaram estáticos perante aquele cenário, sem saberem bem que atitude tomar, se roubavam as maçãs e fugiam ou flanavam por ali explorando o paraíso.
Se ao menos tivéssemos alguém que nos guiasse! - disse um deles.
Querem que vos sirva de guia e mostre as atracções?
As crianças olharam para todos os lados, sem entenderem quem se lhes tinha dirigido.
Aqui em cima, estou aqui. - disse a mesma voz.
Seguindo a indicação da voz depararam-se com uma serpente que lhes acenava com a cabeça. Assentiram e lá foram eles.
- Vamos aqui pelo centro, como já perceberam há por cá muitas macieiras, podem comer maçãs de todas, excepto desta maior, dá umas maçãs muito apetitosas mas não vos aconselho. Da última vez que alguém as comeu foi um sarilho descomunal, eu bem avisei mas o Adão e a Eva não me deram ouvidos, foram expulsos daqui depois de uma repreensão divina que durou dias.
Continuaram o passeio, observando tudo com curiosidade enquanto a serpente descrevia as várias hierarquias de criaturas celestes que povoavam o local: 
- Ali os s serafins, os querubins, os tronos, que mantêm íntimo contacto com o Criador. Acolá os domínios, as virtudes e as potências, são os encarregados dos acontecimentos no Universo. Além os que executam as ordens de Deus, os principados, arcanjos e anjos. 
Chegados junto a Deus, barbas brancas de neve encimadas por uma cabeça coroada de caracóis brancos, uma das crianças perguntou:
Para que serve isto?
A serpente pareceu atrapalhada, pigarreou e por fim disse:
- Bem... Não se sabe... Já ninguém aqui se lembra... Já perguntei a todos, desde o serafim mais novo ao anjo mais velho e ninguém me soube responder.
As crianças fitaram, cheias de curiosidade, a mole imensa que resfolegava e ressonava. Deus dormia numa mansa placidez, ignorando que era totalmente obscuro, que já todos o tinham apagado da memória eterna.

terça-feira, maio 3

Laboratório de escrita criativa - nível avançado - bloco 9

A lembrança de Pedro Quevedo continuava a martelar-lhe na memória. Sentia-se oprimido como se uma mão gigantesca lhe apertasse a alma. A atmosfera ao seu redor contribuía para essa opressão com o seu silencioso calor húmido. De pé, encostado a uma árvore, sabendo que aquele era o seu derradeiro momento de vida, as imagens passam ininterruptamente pelas suas pálpebras cerradas, a chegada de Pedro Quevedo ao aquartelamento, as longas conversas durante as partidas de xadrez intermináveis, a bonomia, o humor corrosivo, a placidez, a forma de estudar as jogadas, a concentração, “Porquê?”. O silêncio opressor do mato parecia tornar-se ainda maior se tal era possível “Porque o matei eu se era seu amigo?”.
A face do jovem major permanece inexpressiva apesar dos pensamentos perturbados que lhe cruzam a mente. Subitamente toda a natureza à sua volta se transformou num turbilhão de sons e movimento, as folhas agitadas por um vento frio, as aves enlouquecidas que começavam a cantar freniticamente, numa aflição, as perdizes que pipiavam assustadas.
Mergulhado nos seus pensamentos atormentados o jovem major não se dá conta da agitação da natureza, a sua tormenta interior abafa completamente a tormenta da natureza, o lago cujas águas se crispam como se fervessem, as folhas que parecem lutar umas com as outras, o esvoaçar alucinado de mil asas. O silêncio impõe-se novamente no memento em que ele abre os olhos e vê a morte.
Andulo ficaria para sempre ligado ao ex-comando Armindo Panguila Pombeiro, fora lá, naquele lugarejo perdido na mata que fizera o seu primeiro morto, recorda-o encostado à árvore, os olhos cerrados, a expressão aparentemente serena, não sentira sequer a sua aproximação, só abrira os olhos um décimo de segundo antes da faca penetrar o seu corpo tenso, fora um olhar atormentado que o fitara, o seu primeiro e único morto, que expirara junto ao seu coração, quando o seu corpo se inclinara em câmara lenta para a frente, pesando-lhe nos braços.
Armindo começou a morrer no dia em que, caminhando descuidado pelo mato, absorto na lembrança da morte do major, pisou uma mina. 
Agora, ali, no branco frio do hospital, dias depois de verificar que já não era um homem completo, pois tinha perdido alguns dedos da mão direita e via a sua mão enfaixada através da névoa que cobria o seu olho esquerdo, o direito tinha desaparecido, sentindo dores na perna direita, que deviam ser psicológicas porque também ela tinha sido amputada. Um resto de homem, dissera-lhe a mulher, não pretendo passar o resto da minha vida com um resto de homem, tratando de um aleijado sem préstimo.
Pensa ainda no major, tem pena de não o ter conhecido melhor, das contingências da vida os terem colocado em campos opostos, da lei da sobrevivência o ter transformado em algoz. Podiam ter sido amigos, se se tivessem conhecido melhor, se estivessem do mesmo lado da barricada, provavelmente ter trocado cigarros, confidências. Enquanto aproxima o cano da pistola da boca pensa que ainda poderá encontrar o major no purgatório dos assassinos, dos guerrelheiros, pedir-lhe desculpa por aquela morte tão abrupta. Aperta o gatilho, o ruído seco da pisitola ecoa no quarto vazio e assusta os pássaros que cantavam na árvore em frente.