terça-feira, maio 3

Laboratório de escrita criativa - nível avançado - bloco 9

A lembrança de Pedro Quevedo continuava a martelar-lhe na memória. Sentia-se oprimido como se uma mão gigantesca lhe apertasse a alma. A atmosfera ao seu redor contribuía para essa opressão com o seu silencioso calor húmido. De pé, encostado a uma árvore, sabendo que aquele era o seu derradeiro momento de vida, as imagens passam ininterruptamente pelas suas pálpebras cerradas, a chegada de Pedro Quevedo ao aquartelamento, as longas conversas durante as partidas de xadrez intermináveis, a bonomia, o humor corrosivo, a placidez, a forma de estudar as jogadas, a concentração, “Porquê?”. O silêncio opressor do mato parecia tornar-se ainda maior se tal era possível “Porque o matei eu se era seu amigo?”.
A face do jovem major permanece inexpressiva apesar dos pensamentos perturbados que lhe cruzam a mente. Subitamente toda a natureza à sua volta se transformou num turbilhão de sons e movimento, as folhas agitadas por um vento frio, as aves enlouquecidas que começavam a cantar freniticamente, numa aflição, as perdizes que pipiavam assustadas.
Mergulhado nos seus pensamentos atormentados o jovem major não se dá conta da agitação da natureza, a sua tormenta interior abafa completamente a tormenta da natureza, o lago cujas águas se crispam como se fervessem, as folhas que parecem lutar umas com as outras, o esvoaçar alucinado de mil asas. O silêncio impõe-se novamente no memento em que ele abre os olhos e vê a morte.
Andulo ficaria para sempre ligado ao ex-comando Armindo Panguila Pombeiro, fora lá, naquele lugarejo perdido na mata que fizera o seu primeiro morto, recorda-o encostado à árvore, os olhos cerrados, a expressão aparentemente serena, não sentira sequer a sua aproximação, só abrira os olhos um décimo de segundo antes da faca penetrar o seu corpo tenso, fora um olhar atormentado que o fitara, o seu primeiro e único morto, que expirara junto ao seu coração, quando o seu corpo se inclinara em câmara lenta para a frente, pesando-lhe nos braços.
Armindo começou a morrer no dia em que, caminhando descuidado pelo mato, absorto na lembrança da morte do major, pisou uma mina. 
Agora, ali, no branco frio do hospital, dias depois de verificar que já não era um homem completo, pois tinha perdido alguns dedos da mão direita e via a sua mão enfaixada através da névoa que cobria o seu olho esquerdo, o direito tinha desaparecido, sentindo dores na perna direita, que deviam ser psicológicas porque também ela tinha sido amputada. Um resto de homem, dissera-lhe a mulher, não pretendo passar o resto da minha vida com um resto de homem, tratando de um aleijado sem préstimo.
Pensa ainda no major, tem pena de não o ter conhecido melhor, das contingências da vida os terem colocado em campos opostos, da lei da sobrevivência o ter transformado em algoz. Podiam ter sido amigos, se se tivessem conhecido melhor, se estivessem do mesmo lado da barricada, provavelmente ter trocado cigarros, confidências. Enquanto aproxima o cano da pistola da boca pensa que ainda poderá encontrar o major no purgatório dos assassinos, dos guerrelheiros, pedir-lhe desculpa por aquela morte tão abrupta. Aperta o gatilho, o ruído seco da pisitola ecoa no quarto vazio e assusta os pássaros que cantavam na árvore em frente.

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