De José Jorge Letria
Os livros são casas
com meninos dentro
e gostam de os ouvir rir,
de os ver sonhar
e de abrirem de par em par
as paisagens e as imagens
para eles, lendo, poderem sonhar.
Os livros gostam muito
de contar histórias,
mesmo que essas histórias
sejam contadas em verso
com a mesma naturalidade
com que eu escrevo,
com que eu converso.
Os livros também respiram,
e o ar que lhes enche as páginas
tem o aroma intenso das viagens
que eles nos convidam a fazer,
sempre à espera que a magia
daquilo que nos contam
possa realmente acontecer.
Os livros são novos e antigos,
mas não gostam de ter idade.
Disfarçam uma mancha, uma ruga
e gostam de viver em liberdade
numa prateleira alta,
sobre a mesa em que se escreve
ou na bibliotecas da cidade.
E é por isso, porque o seu tempo
é sempre maior que o tempo,
que eles não gostam de ter idade.
Os livros gostam de adormecer
com os meninos e contarem-lhes
lendas, contos e histórias
que eles nunca hão-de esquecer
e que outros livros mais novos
com eles hão-de aprender.
E o que cada leitor
descobre ao lê-los
é que eles, de facto, gostavam de saber.
Os livros têm nomes
que se chamam títulos
e as partes do seu corpo
por vezes chamam-se capítulos
e sentem-se vaidosos
se alguém os quer ilustrar
com as cores e os traços
que lembram o céu e o mar
e com as figuras inventadas
que os fazem rir e chorar.
Os livros temem o fogo
e o mal que ele lhes faz
porque aquilo que ele queima
por certo não se refaz
e porque o fogo é o rosto
que às vezes o medo tem
quando, ao queimar um livro,
mata os seus sonhos também,
não deixando nem uma linha
para ser lida por ninguém.
Os livros vêm do tempo
em que não havia livros
por não haver papel impresso.
Mas havia o papiro
e também o pergaminho
e as mil e uma histórias
das mil e uma noites
que se contavam no caminho
e quase tudo o que então se sabia
estava guardado, quem diria?
na Biblioteca de Alexandria
onde acabou por morrer um dia.
Os livros têm saudades
das histórias da infância
contadas pelas avós
que faziam da distância
o atalho que levava
até onde a imaginação
as multiplicava
como se fossem frutos
de uma qualquer estação
onde a poesia se guardava.
Os livros gostam de se deitar
nas almofadas dos meninos
partilhando o seu sono
quando eles são pequeninos
e de ir com eles para escola
misturados com os cadernos
e com os beijos dos pais,
sempre quentes, sempre ternos.
Os livros são o que são
e a ninguém hão-de enganar
porque aquilo que anunciam
é o que neles se vai encontrar:
a aventura, a fantasia,
a magia que há no luar
quando ilumina na página
aquilo que ela tem para mostrar.
Os livros são como as casas,
quem nelas tem morada;
são afinal as personagens
cuja história é contada
pela mão que inventa e escreve
e que é a do escritor,
mão apressada e leve
que faz de cada palavra
um acto criador.
Mas criador de quê?
dos sentidos que existem
naquilo que o leitor lê.
Os livros gostam de fadas,
de bruxas e de duendes
e de outras personagens
que, afinal, só tu entendes
como se, sendo leitor,
estendesses o tapete voador
que transporta o que aprendes,
entre fadas e duendes,
para um lugar com mais cor.
Os livros podem ter alma
como os bichos que os habitam,
sejam gatos, cães ou peixes,
águias, grilos ou golfinhos
ou ainda as andorinhas
que sobrevoam os caminhos
onde vai ficando o rasto
daquilo que tu vais lendo
nos teus queridos livrinhos.
Os livros são a metade
dos sonhos que tu tens,
são a tua liberdade
e o maior dos teus bens,
porque tendo a tua idade
têm tudo o que tu tens.
Os livros põem nas capas
como as pessoas no rosto
aquilo que querem mostrar,
aquilo que dá mais gosto
a quem os vai encontrar.
E é assim que atraem
dos leitores a atenção
e lhes prendem o afecto
que é meio caminho andado
para chegar ao coração.
Os livros têm perfume
que não é de homem ou de mulher
e nem sequer é parecido
com outro perfume qualquer;
é um perfume sem nome,
não é de flor ou maresia,
mas tem o aroma secreto
que existe na poesia.
Os livros gostam que os marquem
com marcadores coloridos
ou com pétalas ressequidas
que lembram os perfumes
que ficaram de outras vidas,
de outros sonhos e leituras
e das falas que alguém pôs
na boca de grandes figuras,
feitas personagens
de romances de aventuras.
Os livros são esconderijos
onde as palavras engalanadas
se preparam para a festa
das coisas enamoradas
pelo mistério de quem conta
mesmo sabendo que ao contar
a história nunca está pronta,
porque em cada recanto do texto
há sempre algo que desponta
só para nos encantar.
Os livros são tão livres
como os mais livres de nós
e por isso há quem receie
que os livros ganhem voz
e venham para o meio da rua
com a verdade nua e crua
do que têm para dizer.
E o que têm para dizer
é, no fundo, a liberdade
que o escritor tem ao escrever.
Os livros gostam de ser
dados como presentes
aos amigos mais chegados,
às pessoas mais diferentes,
mesmo não indo embrulhados
em papéis bem reluzentes.
Os livros gostam de dar
alegria a quem os lê
e só eles e quem os escreve
lá no fundo sabe porquê.
Os livros gostam de ser amados,
de ser lidos e lembrados
e de crescer com os meninos
com que foram embalados.
Os livros têm um sonho:
o de ver outros livros nascer
para que a paixão da leitura
não possa nunca morrer
Os livros têm heróis
que hão-de sempre admirar,
desde o grande D.Quixote
até ao Peter Pan a voar,
passando pela pequena Alice
e pelo Principezinho
com que gosta de sonhar.
Se os livros fossem heróis
teriam ainda, eu sei,
muitas batalhas para ganhar
Os livros têm poetas
abrigados sob os versos
com palavras como setas
e fins que são começos
quando poema finge
que está quase a terminar,
revelando os universos
que outros versos irão mostrar.
Pouco importam os processos
se a magia a vós chegar.
Os livros têm raízes
como as árvores do jardim,
guardam as flores para ti
e os frutos para mim e
só ficam com o perfume
que devagar nos envolve
como uma fala cantante
que nos preenche e comove.
Os livros sabem de cor
aquilo que a gente esquece
e mal ele termina
nós queremos que recomece
apenas porque sabemos
que o feitiço acontece
e que há uma parte de nós
que ao relê-los estremece.
Os livros fazem perguntas
porque sabem que as respostas
são bem menos interessantes
e que algumas se mantêm
tão actuais como dantes.
Os livros têm saudades
daquilo que está para vir,
que o passado já o conhecem
e não o querem repetir.
São saudades soletradas
com a ternura das fadas
que gostam de pôr livros
na árvore das madrugadas.
Os livros às vezes sentem
o peso que a vida tem,
mas, que eu saiba,
não se queixam a ninguém.
Vão cumprindo o seu destino,
sabendo que é uma missão.
E essa missão o que é?
É estar sempre, sempre
onde os leitores estão.
Os livros são casas livres
onde as palavras se cruzam
para mostrarem os sentidos
que têm e que usam.
Os livros são tão livres
como a nossa liberdade,
seja na areia da praia
ou na biblioteca da cidade,
porque sempre que se abrem
dizem o muito que sabem
só para nos dar felicidade.
1 comentário:
O José Jorge Letria é um craque...discreto.
Beijinhos
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